Morte de João Pessoa: O crime que marcou a Paraíba e mudou a política no Brasil
O assassinato do
governador da Paraíba no dia 26 de julho de 1930 em Pernambuco foi o estopim
para tomada de poder por Getúlio Vargas. Nome da capital e bandeira da Paraíba
foram mudados em homenagem ao político paraibano.
Por André Resende, G1 PB
26/07/2020 12h35 Atualizado há 3 anos
O maior fato político da Paraíba no Século XX, também
considerado um dos mais importantes do Brasil pelo menos na primeira metade do
século passado: a morte de João Pessoa, então presidente da Paraíba, completa
90 anos neste domingo (26). O assassinato que eternizou o nome do político na
capital da Paraíba e o luto na bandeira do estado foi o episódio fatídico que
mudou os rumos políticos do Brasil, decretando o fim do período da República
Velha e alçando Getúlio Vargas ao poder.
Crime passional ou homicídio por razões políticas?
Embora haja um acirramento de narrativas para contar as versões do fato, o
professor da UFCG José Luciano de Queiroz Aires, doutor em História pela UFPE e
autor do livro “A Fabricação do Mito João Pessoa: Batalhas de Memórias na
Paraíba (1930-1945)”, propõe uma explicação científica para o assassinato do
governador da Paraíba em 26 de julho de 1930 pelo advogado João Dantas, no
Recife, como um misto das duas versões totalizantes.
O professor e escritor afirma que sem a morte de João
Pessoa, e o tratamento político que foi dado a ela, com a peregrinação do corpo
do presidente da Paraíba por todas as capitais antes de ser enterrado no Rio de
Janeiro, quase como uma santificação do político, Getúlio Vargas dificilmente
teria ascendido à Presidência da República por meio de uma tomada de poder
através do que ficou conhecido como Revolução de 1930.
“A verdade é que João Dantas matou João Pessoa, mas, ao
mesmo tempo, o transformou em um mártir, permitiu que se criasse um mito na
figura do Governador da Paraíba na época. Esse fato histórico muda a História
do Brasil. Ele germina o ‘getulismo’, não podemos subestimar como um crime
passional, muito embora o estopim tenha sido”, explica.
A morte de João Pessoa, que na época tinha perdido as
eleições presidenciais em março de 1930 enquanto vice-presidente na chapa de
Getúlio Vargas para Júlio Prestes, ajudou Getúlio a alimentar uma consternação
popular que, somada à acusação de eleições fraudulentas e ao momento de crise
financeira em consequência da crise de 1929, desencadearia o episódio histórico
que ficou conhecido como Revolução de 1930.
A revolta destituiu o presidente Washington Luís, a quem João Pessoa se
posicionou como oposição política enquanto vivo, impediu a posse de Júlio
Prestes e determinou Getúlio Vargas como chefe do governo provisório que
comandaria o Brasil. “Podemos afirmar que a morte de João Pessoa, com todo
contexto político, econômico e social que existia, foi um dos motivos da
Revolução de 1930 e consequentemente do fim do período que chamamos de
República Velha”, analisou Aires.
Entre julho e outubro daquele 1930, à medida em que o corpo de João
Pessoa peregrinava entre as principais capitais do Brasil para receber
homenagens por conta da morte pretensamente política, seu nome ia batizando
ruas, avenidas e praças pelo país, conta o historiador.
O ritual criado em torno das solenidades fúnebres para João Pessoa
criou um mito, sendo idealizado pelo empresário e comunicador paraibano Assis
Chateaubriand, entusiasta da Aliança Liberal, grupo político que o governador
da Paraíba fazia parte, na análise de José Luciano de Queiroz Aires.
“Não só na Paraíba, quase todos os estados do brasil colocaram o nome
de João Pessoa em algum espaço público. Em vários estados temos praças,
homenagens a ele, mas essa mobilização aqui foi muito mais forte, com a mudança
do nome da capital, da bandeira do estado, e com a criação de monumentos e de
até um hino para a pessoa de João Pessoa”, conclui o professor.
Crise
na oligarquia paraibana
Para entender o que pode ter levado João Dantas a puxar
o gatilho do revólver e matar João Pessoa dentro da confeitaria Glória, no
Centro do Recife, em 26 de julho de 1930, o professor e escritor José Luciano
de Queiroz Aires comenta que é necessário antes conhecer o contexto político da
Paraíba no período.
Àquela altura, João Pessoa estava há dois anos como governador
do estado. Apesar de ter saído de uma família que pertencia à oligarquia
paraibana, tentava implementar uma política moderna e centralizante que rompia
com os interesses do grupo político do qual ele saiu.
Nesse modelo de gestão que João Pessoa instalava na Paraíba, os coronéis da época, como eram conhecidas as lideranças econômicas e políticas das cidades do interior, começaram a perder poder. O então governador paraibano trouxe para o aparelho do estado a maior parte das decisões que estavam nas mãos dos coronéis.
“As obras contra a seca passaram para o estado, ele
desarmou coronéis, criou imposto, uma espécie de pedágio. Criou também uma
reforma tributária para dinamizar o porto e o comércio no estado. As entradas e
as saídas de produtos que vinham de fora, se fosse pelo porto da capital tinham
um valor de tributo, e se fosse direto com Recife, a tarifa era altíssima. Esse
é o fator fundante da política centralizadora”, relata o professor, pesquisador
e escritor.
João Pessoa também cria, em meio a esse panorama
político, o Tribunal de Contas, para fiscalizar as contas das prefeituras
paraibanas, que eram reservas de poder dos coronéis. “Ele não rompe
publicamente com os coronéis, mas submete todos eles a essa centralização. A
reforma tributária, aliás, é o que explica, por exemplo, a Guerra de Princesa”,
avalia Aires.
O episódio histórico da Revolta de Princesa, movimento
armado comandado pelo coronel José Pereira contra as imposições do governo João
Pessoa, culminou com conflito violento entre o líder político da cidade de
Princesa Isabel contra a Polícia Militar do estado. Aquela é considerada a mais
emblemática demonstração política de indignação das oligarquias ao modelo
gestor de Pessoa.
A Guerra de Princesa, como lembra Aires, só viria a
acabar - sem um vencedor na análise dele -, após uma intervenção federal a
mando do presidente Washington Luís, embora não tenha contido a insatisfação
dos coronéis. Além da queixa por conta dos impostos, que prejudicaram os
negócios, as oligarquias paraibanas não aprovaram a vontade política de João
Pessoa de excluir das eleições quadros antigos e consagrados no partido.
Na reunião do Partido Republicano da Paraíba, João
Pessoa, ainda enquanto integrante, havia se posicionado contra as candidaturas
de políticos mais tradicionais, oriundos das oligarquias, como o caso de João
Suassuna, que havia antecedido Pessoa como presidente da Paraíba e que ocupava
o cargo de deputado.
“Na convenção do partido, em 1930, João Pessoa defendeu
uma política de renovação, queria tirar pessoas velhas para botar nomes novos.
Nessa defesa, sacrificou o nome de João Suassuna, que buscava reeleição, mas
manteve o do próprio primo na disputa, Carlos Pessoa de Umbuzeiro, que
representava a velha política”, comentou Aires.
Em meio ao contexto político de conflito interno nas oligarquias, causado por João Pessoa, uma decisão governamental que causou contrariedade em outra família, a Dantas, da cidade de Teixeira, foi a mudança de chefias de cargos públicos importantes. Na época, o presidente (nome do cargo de então governador do estado) detinha o poder discricionária de mudar peças em órgãos da administração direta, como ainda é atualmente, e também no judiciário.
João Pessoa trocou juízes e delegados nas cidades onde
as oligarquias tinham muita influência. No caso de Teixeira, reduto político da
família Dantas, o presidente da Paraíba nomeou um delegado que passou a
perseguir politicamente pessoas daquela família. “Temos registro de prisões de
familiares de João Dantas no período, de mulheres da família, inclusive, fato
que gerou muita indignação”, explicou o professor da UFCG.
A postura assumida por João Pessoa gerou uma rusga com
três das principais oligarquias: Pereira, de Princesa Isabel; Suassuna, de
Catolé do Rocha; e Dantas, de Teixeira. “Todos eram do mesmo grupo, incluindo a
família Pessoa de Umbuzeiro, mas após o governo de João Pessoa acontece esse
racha na oligarquia paraibana, principalmente com essas três famílias
tradicionais do estado”, ressalta José Luciano de Queiroz Aires.
Muitos dos considerados perseguidos politicamente pelo
governador decidiam pelo exílio político, indo morar em outros estados. A maior
parte deles estabeleceu residência no estado vizinho Pernambuco, como foi o
caso de João Suassuna, pai do escritor Ariano Suassuna, e do advogado João
Dantas, que viria a se tornar no dia 26 de julho de 1930 o assassino de João
Pessoa.
Ataques
nos jornais
A crise vivida entre o governador do estado com as
oligarquias gerou constantes discussões públicas por meio dos jornais,
principalmente entre João Dantas, que escrevia para o Jornal do Commércio de
Recife, e de João Pessoa, articulista do jornal do próprio governo paraibano, A
União. Os embates por meio de artigos nos dois periódicos integram parte do
acervo resgatado pelo historiador Wellington Aguiar, em seu livro “João Pessoa:
O Reformador”, de 2005.
O uso do jornal A União para atacar seus desafetos políticos,
aliás, era recorrente por parte de João Pessoa. Entre 20 e 26 de julho de 1930,
data fatídica de seu assassinato, o periódico paraibano, considerado um dos
mais antigos da América do Sul, reservou ataques diretos às famílias Pereira,
Dantas e Suassuna nas manchetes principais.
Além dos ataques públicos às famílias rivais, inclusive
como na capa do jornal de 24 de julho de 1930 quando liga João Suassuna ao
movimento do cangaço no Sertão paraibano, o jornal A União deu publicidade a
documentos retirados a partir de um arrombamento supostamente clandestino feito
ao escritório mantido por João Dantas na capital paraibana, à época ainda
cidade da Parahyba.
A versão que se popularizou foi de que o escritório foi invadido a mando político de João Pessoa, no entanto, oficialmente, o que se sabe é que o escritório foi encontrado arrombado e os documentos que nele estavam foram recolhidos pela polícia estadual da época.
O professor da UFCG, doutor em História pela UFPE, José
Luciano de Queiroz Aires explica que não há mais como confirmar documentalmente
que João Pessoa foi mandante da invasão ao escritório de João Dantas, mas que é
indiscutível o uso político do material que foi recolhido a partir daquela
invasão.
“A documentação sugere que [a invasão] foi feita pela
polícia da Paraíba, inclusive o gabinete onde João Pessoa atendia era na mesma
rua do apartamento que foi arrombado, mas não temos mais como comprovar a
veracidade absoluta”, explicou o historiador.
Parte desses documentos foram publicados pelo jornal A
União sob a manchete “Revelando a alma tortuosa dos conspiradores contra a
ordem e a dignidade de nossa terra - A polícia apreendeu armas e sensacionais
documentos na residência do sr. João Dantas”.
“Investigando sobre o caso, a polícia examinou os papéis
espalhados, notando que entre eles havia documentos profundamente
comprometedores no que se relaciona com a ordem pública e a agitação política
que separou nos últimos tempos parahybanos dignos do grupo de aventureiros e
traidores sem escrúpulos”, diz um trecho da reportagem sobre o episódio
publicada no dia 22 de julho de 1930.
A reportagem inclusive traz que “os documentos
encontrados ‘A União’ começará amanhã a publicar, porquanto os mesmos contêm
curiosas revelações sobre os miseráveis modos de agir dos inimigos da Parahyba,
dos quais o tarado João Dantas era uma espécie de espião e cônsul geral nesta
cidade”.
O mesmo assunto estampou a capa do jornal A União nos
dias 23 e 26 de julho, e teve publicações de reportagens nos dias 24 e 25 o
mesmo mês. A manchete d’A União de 25 de julho, aliás, cita expressamente que a
família Dantas havia roubado dinheiro dos cofres públicos a partir de obras
estatais contra a seca.
A publicação das cartas de João Dantas cessou na edição
de 26 de julho, quando na edição do dia seguinte, a cobertura jornalística do
periódico do governo paraibano passou a se dedicar a reportar a morte de João
Pessoa e seus desdobramentos. Porém, ao fim da publicação dessa edição, o
jornal A União traz o seguinte trecho:
“No cofre marca ‘Torpedo’ encontrado no quarto do
bacharel João Dantas a polícia achou notas redigidas pelo próprio punho do
espião com a narrativa de atos amorosos pelo mesmo praticados. Tais notas não
podem ser publicadas porque ofendem ao decoro comum. Mas quem quiser vê-las o
pode fazer na delegacia”.
Logo em seguida, reproduz um poema escrito por João Dantas intitulado Sangue de Cangaceiro. As notas citadas na reportagem são as cartas de amor trocadas entre o advogado paraibano e a professora Anayde Beiriz, que em meio a essa briga política entre seu namorado e o governador do estado, teve sua honra ultrajada a partir da exposição de sua intimidade perante uma sociedade paraibana moralista e pouco afeita às mulheres que assumiam posturas sociais mais modernas.
‘Um
crime pessoal’
O mesmo jornal A União que trazia o relato das notas
imorais de João Dantas e indicava que estavam disponíveis na delegacia da capital
paraibana, avisava que o presidente João Pessoa estaria no Recife, capital
pernambucana, para visitar um amigo, o dr. Cunha Mello, que se convalescia de
uma cirurgia. De toda forma, o poder tinha sido entregue ao vice-presidente
Álvaro de Carvalho.
Se a nota no jornal influenciou nos planos de Dantas,
não há como saber, porém após a sequência de ataques promovidos no jornal
oficial do governo paraibano, o historiador José Luciano de Queiroz Aires
comenta que é possível inferir que houve um contexto passional por parte do
desafeto de João Pessoa.
“A exposição da intimidade do romance dele com a
professora Anayde Beiriz pode ter sido um fato determinante nesse crime. A
verdade é que a morte de João Pessoa foi um tiro que saiu pela culatra entre os
perrepista [membros do Partido Republicano, rival ao de João Pessoa]. João
Dantas criou um herói, houve uma mitificação. Os próprios perrepistas caíram em
desgraça depois disso, passaram a ser perseguidos”, explicou.
O historiador comentou que não entende o crime meramente
como passional, nem como apenas político. “Foi um crime de honra, como se dizia
antigamente, para lavar a honra, foi por uma vingança em nome da honra. Havia
uma sequência de problemas políticos, mas não foi um crime passional, foi um
crime pessoal”, define o historiador doutor pela UFPE.
João Dantas e seu cunhado, acusado como cúmplice no
assassinato, foram presos e posteriormente encontrados mortos dentro da cela em
que ocuparam no Recife. A versão de suicídio de ambos não é aceita pela
literatura histórica, que, segundo Aires, considera relatos de testemunhas de
que o irmão de João Pessoa e um policial teriam sangrado João Dantas e seu
cunhado no cárcere.
Anayde Beiriz, vítima indireta de todo esse acirramento
político, após a morte de João Dantas, sabendo que a polícia estava à sua
procura, se refugiou no Asilo Bom Pastor, no Recife. As freiras contam que
quando ela chegou ao local já havia ingerido veneno, no dia 19 de outubro.
Segundo a carta da Madre Superiora enviada à família, ela sofreu muito. Morreu
rezando o Pai Nosso, no dia 22 de outubro de 1930.
João Pessoa, o presidente da Paraíba morto a tiros na
confeitaria Glória no Recife, entrou para a história como mártir. Seu corpo
peregrinou de porto em porto no Brasil, e foi enterrado no Rio de Janeiro. A
comoção popular após sua morte gerou em setembro de 1930 a mudança do nome da
capital da Paraíba e a adoção de bandeira vermelha e preta com o termo Nego,
representando o luto e a luta.
“Não se pode subestimar a morte de João Pessoa. Foi um
fato político mais importante para que ocorresse o fim da República Velha, para
que mudasse para sempre os rumos da política do país”, concluiu José Luciano de
Queiroz Aires.